terça-feira, 23 de outubro de 2012

Do Que se Não Tem, Tendo - Parte I


«Ouça, faz-me falta o calor.
É urgente amar, é fulcral gritar-se palavras ao infinito, em aparente loucura.
Eu até prefiro a noite ao dia, e doutra forma não faria sentido.
Gosto do som das lâmpadas zumbindo, e da minha sombra reflectida nas fachadas dos prédios. Em certa extensão, eu sempre fui narcisista, mas encontrar-se algo maior do que nós tem o seu peso e revemo-nos, noutra perspectiva - ou pelo menos devia ser assim.
Compreenda-me, eu não sou rico, nem particularmente fantástico, nem tenho muito para oferecer senão palavras e gestos, mas até estes últimos são erróneos e fazem-se gastos. Na verdade, eu nunca soube dividir-me; talvez por isso nunca me tenha sido verosímil aquela ideia das laranjas cortadas a meio. É essencial cada um ser um e juntos formarem dois; se ambos forem meio, invariavelmente, a balança pende para um dos lados, e cai, e parte-se.
É disso que tenho receio, dessa quebra, como se existisse um desencontro: salta um gomo à peça de fruta e depois ninguém parece saber encontrá-lo.
Atente nos sinais mais básicos de exposição e verá que faz algum sentido, ao contrário do todo.
Pedi um tempo a mim próprio, para equilibrar os meus sentidos. Houve e há tanto que liga as pessoas, tanto mais do que as separa.
Até prezo a diferença, sabe, mas finjo que não e nem entendo porquê; o que sucede, é que os olhos verdes já me não seguem para qualquer lado que vá e isso, intriga-me. Afinal de contas, o que nos é conhecido deveria, logicamente, ser-nos mais agradável e, contudo, nem sempre é assim.
- Perde-se na narrativa e, por este andar, ainda me embala antes de jantar.
Sigo, portanto. Sabe que agora é Fevereiro; e, contudo, há um ano atrás, Fevereiro tinha mais sabor.
Lisboa é diferente quando se está apaixonado: não é cinzenta, nem de rocha. E os meus olhos até são castanhos, e é como se florescesse ao nosso olhar.
Nesse tempo, eu ainda escrevia cartas a contar-lhe do amor que me envolvia. Já não as escrevo, porém. Não porque o amor se tenha deslocado, não julgue, mas apenas porque sei que não teria o mesmo impacto. Nesse contexto, revejo o meu pequeno postal de Nietzsche e, realmente, vejo que nenhum de nós soube alguma vez escrever cartas de amor, mas o pouco que fomos aprendendo chegava para suprir as vontades dos nossos suspiros.
É como lhe digo:

- O amor, à deriva, é um lugar estranho.

E, no entanto, estabelecido, é como campos de trigo a ondular com Helios, ou bandeiras danças a ulular ao vento.»

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