terça-feira, 28 de agosto de 2012


Lembras-te de Lisboa nos tempos de sal e quimeras;
Nos tempos em que as laranjeiras floreavam em Abril
E o pão quente navegava em odor nos ares?

É que desta janela só se vê cinza,
E eu fico perdido a observar os caminhos
Que nos levam daqui a Sintra,
Como no primeiro momento em que te toquei a face
E te contava histórias em silêncios de véu.

Aqui donde miro o Tejo nada floresce;
As calçadas são quase breu
E o céu mal me aquece.
É como se encostasse mil flores
Contra os meus próprios olhos
E as narinas sorvessem apenas
O cheiro de uma revelação.

Recordo também as tardes que 
Passava, passeando em Belém
Comendo sorvetes de nicotina
À beira da torre.
Ouvia os britânicos largarem sotaque pestilento
E cabelos vermelhos a ulular ao vento
Palavras destilando estudado desdém.

E depois do pontão de Algés,
As ondas inexistentes do Tejo a bater na rocha.
O sal da água doce a roçar o ar
E eu gritando injúria ao vento;
Nem nessas alturas se escapulia uma nuvem
Nem a chuva caía a rodos como eu esperava
E me engolisse o borrão negro.

E o Jardim da Estrela de bancos verdes
E um carvalho gigantesco,
Em tempos em que ainda poucos mendigos haviam
E uma depressão ridícula não havia roubado a alma ao nosso povo.
Fazia de facto uma Primavera,
Não apenas um Verão fingido,
Não havia trinta graus em Maio nem os glaciares derretiam
E não trovejava com tempo quente.

É este o problema dessa lumière:
Acredita-se no progresso ilimitado
E o espalhafato dobra a esquina próxima.
Deixam de fazer sentido as considerações de outras espécies
E vemo-nos, enfim, no olho do furacão.

Seria tão mais fácil viver nessa ilusão diariamente,
Como quando éramos crianças e 
Jogávamos a bola contra o muro branco
No mesmo gradeamento verde onde a velha caiu
E morreu e eu vi sangue,
Onde o carro extravasou a estrada 
Escolheu o homem que se sentava,
Onde eu costumava almoçar quase todos os dias.

Continuo vivo.

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