quinta-feira, 30 de agosto de 2012

E se fôssemos os dois ali ao quebramar?

E se fôssemos os dois ali ao quebramar? Eu pegava-te na mão e se calhar partíamos doutras ondas que não as dos cafés que consumimos sentados. Costumava ir lá em novo, quando a minha avó ainda respirava e me conduzia pelos molhes; no fundo, a familiaridade seria outra, eu fazia-te festas nos cabelos e fingíamo-nos interessados um no outro, como quem olha para a rua por não ter melhor que fazer. Conheces bem Lisboa? A mim esta cidade sempre me deu vontade de a comparar com Paris, e até sei que a relação é nula mas que se pode fazer, é como se todos os pombos fossem os mesmos e viessem apegados às asas da águia azul que liga as duas capitais. Olha-me nos olhos e diz-me que não conheces Lisboa; é que eu sempre fui um guia extremamente solícito e levar-te-ia facilmente onde quisesses. Podíamos passear pelo Rossio e subir a Mouraria, comprar laranjas nas lojas de esquina e sugar-lhes o sumo com duas palhinhas de vento; ou então seguir na direcção oposta, subir a Santa Luzia e visitar o Castelo, olhar para a colina das Amoreiras e ver o Tejo a perder de vista.
Ou podemos simplesmente continuar a caminhar mentalmente, como uma espécie de cinética que não existe, onde não nos tocamos, eu olho-te por entre sorvidas do café e tu atiras-me sorrisos entredentes. Eu já bebia outro café, sabes? E pedimos, pedimos mais dois, mais três, por entre cigarros desmedidos, e partilhamos histórias dessa juventude perdida que já não volta, desses tempos em que havia mais media dúzia de tostões a tilintar nos bolsos e dois contos davam para tomar o pequeno-almoço durante semana e meia. Ia à pastelaria da esquina do Largo de Alcântara e comia torradas a abarrotar de manteiga. É que eu sempre fui gordo, não sei se se nota, mas adorava comer tudo o que me fosse de certa forma indesejável, da mesma forma que continuo a ter desejos que me deitam abaixo. O mais certo é que sejamos todos assim, principalmente eu e tu, vejo a tua mão avançar pela mesa para segurar na minha, mas não estou seguro dessa vontade, e até sei que não a desejo. O problema é que a física me avisava para a inércia dos corpos e eu não ligava, a química contava-me que os corpos se expandem com a temperatura, e nem assim eu ligava, e nem quando a matemática me advertia que invariavelmente se coloca um x e um y na mesma equação eu ligava. É que nunca fui de me dar às ciências duras, nem às durezas da vida, e sempre me dei mais a filosofias, tenho este horrível hábito de começar demasiadas frases por “É que” e “E se” e todas essas conjunções que não servem para nada. Fazem-me falta os tempos em que podia dizer o que me apetecia e nada se movia por isso; agora quando falo, em específico polemicamente, parece que um alinhamento estranho digno de invenções zodíacas se atravessa no meu caminho e dou comigo a pensar que mal é que eu fiz para merecer que me julguem por meia dúzia de palavras, que mal que eu fiz para nem sequer conseguir chamar a chuva. E se agora te desse a mão, provavelmente faria Sol e eu nem gosto muito de calor; o problema é esse mesmo, causas-me calor. Eu gosto de frio, frio cortante. E não desejo nem o calor da tua pele nem o silêncio dos teus abraços. Antes prefiro que fales a perder de vista, para eu me poder calar e ver nos teus olhos azuis outra cor qualquer, e os teus cabelos lisos encaracolando como fadas. Bem sei que as minhas palavras são lâminas, e bem sei que me poderás compreender nunca, ao menos enquanto te enquadrares em mim dessa forma tão leviana; as hipóteses de findar este dia nos braços um do outro são nulas, e acredita que tens uns braços bonitos. 
Eu é que já não preciso de água, e tu nunca me fizeste chover.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Se eu te adocicasse palavras por entre o fumo do meu cigarro, mentir-te-ia.


Se eu te adocicasse palavras por entre o fumo do meu cigarro, mentir-te-ia.
Acreditaríamos ambos que, por um segundo, fomos de facto livres e melhores que nós para descobrir no momento a seguir que as nuvens nos engoliam como se fossemos cinzas.
Fundamentalmente, o que me distingue destes químicos que o meu prazer me larga ao chão é tão somente uma questão materialista; a diferença de constituir grande percentagem de água ou queimar rapidamente, a de deixar de raciocinar de forma simples ou vagamente soçobrar comandado pelo vento.

Afasto-me.

O cerne é o de te contar que nada faz sentido sequer. Até a internet me diz que nada faz sentido. Se eu pegasse na tralha e te tocasse a campainha violentamente, dir-me-ias que esperasse pela manhã, como quem enxota um gato, e o certo é que esperaria no teu alpendre pela taça de leite da tua presença.
Se me puxasses pelo braço, eu responder-te-ia torto e tu sentir-te-ias noutras vertentes de sentimento. E na verdade, eu sofro deste mal tão mais premente de violentar o que mais amo. Desde novo, quando brincava com as figuras de acção, tanto mais esgotava a preferida que se transformava sempre na primeira a partir.
E nós não somos marionetas. Sabes que gostaria de colocar os meus dedos por detrás dos teus cabelos à beira desses fios que te ordenam, e puxar-tos como se fossem de nylon ou outro material qualquer desses que se definem por estrangeirismos, e fazer-te agir da forma que gosto, ou que considero correcta.
Afinal de contas, ao fim de vinte e um anos, resta-me compreender que existe um mundo além do meu umbigo, por mais que o meu umbigo constitua um mundo por si só.
Na realidade, todo o problema é esse. É esta arrogância, este desprendimento, este palavrão que sai tão fácil e tão facilmente o controlaria. O que me esgota é a falta de controlo, o excesso de rotinas; não sucumbir à vontade de pegar na trouxa e bater à tua porta e dizer-te palavras adocicadas no fluido agridoce do meu cigarro. E não te dar tempo que batesses com a porta como quem faz um esforço enorme para se mostrar aborrecida, e não dormir no alpendre à espera que acordasses, mas acordar ao teu lado na taça de leite úmbreo que são as íris dos teus olhos.
O que me aflige realmente é saber que acordarei amanhã à espera de um dia qualquer que nunca há-de chegar em que fôssemos os dois à beira Tejo olhar para uma manhã a clarear em lençóis vazios.
E o que prende mais ainda, é saber que escrevo cartas de madrugada, sem saber muito bem porquê nem para quem, a imaginar personagens à laia de femme fatale que só existem na minha mente.
Se precisares de um nome, responder-me-ás. Caso contrário, faço de conta que ninguém sabe sequer que a onomástica existe e dormimos os dois na mesma cama, mesmo que eu seja de carne e osso e tu te esfumes em vapores de éter.

Lembras-te de Lisboa nos tempos de sal e quimeras;
Nos tempos em que as laranjeiras floreavam em Abril
E o pão quente navegava em odor nos ares?

É que desta janela só se vê cinza,
E eu fico perdido a observar os caminhos
Que nos levam daqui a Sintra,
Como no primeiro momento em que te toquei a face
E te contava histórias em silêncios de véu.

Aqui donde miro o Tejo nada floresce;
As calçadas são quase breu
E o céu mal me aquece.
É como se encostasse mil flores
Contra os meus próprios olhos
E as narinas sorvessem apenas
O cheiro de uma revelação.

Recordo também as tardes que 
Passava, passeando em Belém
Comendo sorvetes de nicotina
À beira da torre.
Ouvia os britânicos largarem sotaque pestilento
E cabelos vermelhos a ulular ao vento
Palavras destilando estudado desdém.

E depois do pontão de Algés,
As ondas inexistentes do Tejo a bater na rocha.
O sal da água doce a roçar o ar
E eu gritando injúria ao vento;
Nem nessas alturas se escapulia uma nuvem
Nem a chuva caía a rodos como eu esperava
E me engolisse o borrão negro.

E o Jardim da Estrela de bancos verdes
E um carvalho gigantesco,
Em tempos em que ainda poucos mendigos haviam
E uma depressão ridícula não havia roubado a alma ao nosso povo.
Fazia de facto uma Primavera,
Não apenas um Verão fingido,
Não havia trinta graus em Maio nem os glaciares derretiam
E não trovejava com tempo quente.

É este o problema dessa lumière:
Acredita-se no progresso ilimitado
E o espalhafato dobra a esquina próxima.
Deixam de fazer sentido as considerações de outras espécies
E vemo-nos, enfim, no olho do furacão.

Seria tão mais fácil viver nessa ilusão diariamente,
Como quando éramos crianças e 
Jogávamos a bola contra o muro branco
No mesmo gradeamento verde onde a velha caiu
E morreu e eu vi sangue,
Onde o carro extravasou a estrada 
Escolheu o homem que se sentava,
Onde eu costumava almoçar quase todos os dias.

Continuo vivo.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012


Tudo é silêncio.
Os caminhos de canaviais parados em beiras de estrada,
Água que escorre pelas folhas.

Os meus silêncios, esses,
São como todos os outros, e esmorecem.
Diferem somente por conter em si todas as letras do mundo;
Todos os sais, e horizontes,
Como se fossem cinzento
À espera de clarear.

Aos outros, dá-se-lhes silêncios moribundos
Dos que ficam colados à pele e demoram-se a partir.
Como se apenas eu me capacitasse
E conjurasse palavras
Donde todo o mundo segue sombras.

A mim, que não me sobra água,
Duram-me os ditos entre dedos,
Na madrugada sorrateira
Raiando céus de sangue.

Tu que me alumias
Segue cruzando as marés
Em cinéticas de magnetismo infinito.

Há silêncios por entre os passos que ressoam
Por entre as tábuas de madeira por entre os canaviais de beira de estrada
Por entre os sais, horizontes e cinzentos.

Quam aurea est sua aura, Selene.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012


Soava-me a Deus pelas pedras da calçada
E pelos mármores dos caminhos
Adonde se me alongavam as pernas
Em exclamações inúteis.

De nada me serve passear o cão contente
Ou raspar os sapatos no alcatrão das estradas;
O vento estremece a cada gesto
A cada silêncio de cada madrugada.
Chove, Lisboa maldita.
Pinta o teu castelo de ácidos esverdeados,
Enquanto a meia dúzia de metros raia o Sol branca Selene.

Não existem sombras na noite escura.
Como se do alto a alva Deusa se olvidasse das presenças
Nas ausências de encontros fugazes;
Nem sonoras sirenes cortavam a magnética bruma
Que esmorece os sabores agrestes da maresia
Nem solares discos assomam
Esbranquiçando o céu cinzento.

Ao longe o mar corta a rocha à falésia
E obriga-a a quebramares profusamente oblíquos
E o som ribomba no ar fresco dos dias
A explicar ao divino a sua inexistência.