À parte dos meus sapatos, serei sempre um fato:
Tecido enegrecido, e meia dúzia de botões de plástico.
Se não fosse isto, não seria mais nada,
Nem sangue nem sede nem ordem nem árvores nem pedaços de vida.
Toda e qualquer filosofia estancou no tempo,
À procura de um silêncio menos profundo.
Nem trapos, nem farrapos, nem sono,
Não posso querer ser tudo; nem devo volver-me a nada.
Olho à minha volta, e compreendo que somos todos fatos:
O jovem banqueiro tropeça na gravata cor-de-rosa.
A rapariga dos calções curtos toma café na esquina,
E o cão repousa na calçada preso ao candeeiro.
A cabeleireira acabou de pintar as raízes, e já vem de dentro para fora
E os sapatos do taberneiro estão gastos, e ressoam.
À parte disto, nada mudou;
Nem os dedos nem as chances nem os sopés das montanhas nem os mares ao infinito nem o sol a brilhar em dias de chuva nem a chuva a cair em dias de sol nem o arco-íris a desenhar-se aos ventos nem as metáforas nem as mesas de café nem as madeiras das mesas nem os pés dos transeuntes nem os pneus das motorizadas nem o silêncio à porta de casa.
Em suma, somou-se o que houve,
E depois, nada.
Nem o ruído, mas, enfim, os braços.
Sumiu-se me a cinética inteira,
Varreu-se, e nem os lixeiros a vendem.
Bati à porta três vezes e nem o postigo se abriu, nem a velha vizinha me dava os bons-dias com o crucifixo ao peito.
Ela não é um fato: anda sempre de avental.
A criança veste o bibe num cerimonial quase avarento, estudado enfim, e o meu fato coçado dá-me impressão de já acinzentar com o uso.
Deito-me ao relento, e puxo um cigarro.
Contudo, nada sucede.
Nem as mágoas se esvaem nem os barcos cruzam o Tejo nem a erva se esbulha nem o isqueiro se acende,
E, dantes, quando puxava dum cigarro, o meu fato despia-se doutro fato que me acendia o papel.
É como se não houvesse lume para dar, e os fatos não tivessem lume;
A chama aliás, não tem pensamento algum,
Nem Prometeu prometia a filosofia do fogo.
E, contudo, apagou-se, como se a brisa varresse os silêncios do cume das terras dos antros das cidades dos arcos de Lisboa da augusta calçada;
O lume não ficou.
Apagou-se, e dava-se a conhecer, como se me pedisse água antes.
Se lhe pudesse ter respondido, diria que não me cabe no fato uma garrafa de água e não tenho nada por debaixo dele, nem água nem sal.
A rapariga dos calções curtos pousou a chávena e libertou o cão da prisão das luzes e o cão abanou o rabo e a rapariga baixou-se para lhe fazer festas e os calções subiram um pouco e eu olhei.
Talvez ela me pudesse acender o cigarro, ou valer-me como cinzeiro durante largos momentos, eu emprestava-lhe o fato e redescobríamos ambos o lume nas suas mãos.
Mas não: antes suspirei, desviava o olhar e seguia em frente.
Não sei vestir o que fato que trago despido, nem despir o fato que venho vestindo.
Se soubesse, atirava-o aos carris.
Não há filosofia nos homens de fato.
Só a escuridão do tecido enegrecido, e meia dúzia de botões de plástico,
Nem os sapatos de quem se imagina.
O meu fato cinzento nunca foi preto,
O dono do café da esquina faz-me sinal,
Acende-me o cigarro e eu não sei fumá-lo.
Sem comentários:
Enviar um comentário