segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Fui aos arames à dor de corno p'ra ordenar o mundo na sofreguidão do alento, esperava sentado à beira desse rio, mais um cigarro e atenua-me os cornos ou pelo menos vai às voltas no fumo que delira. Sentada na beira-mar, olha para mim e para a velhice, sabe como é, ao menos quanto mais velhos ficamos menos pensamos nesses delírios da mocidade buracos são feitos p'ra serem tapados, acompanha-me numa cerveja pergunto e deslindo o sorriso e você só me olha nessa indignação furtiva, bêbado quem foi eu não sei sempre bebi por acidente, interessa-lhe ouvir a história de Lisboa há meia dúzia de dias ou de anos nem sei bem, interessa e eu olho para o Tejo, mudou tão pouco e nós formando à beira de
- Lá vamos cantando e rindo
forma(ta)dos para uma meia dúzia de ideais sem cor nem fundamento lembro-me bem das bochechas rosadas nas faces dos meus tios, previsões feitas em salas com suores bafientos a perseguido político hás-de ser vermelho e eu sorria, sabia lá o que era além dos sugos de morango na pastelaria da esquina.
- Lá vamos que o sonho é lindo
lindo como o raio que o parta hoje cada vez que venho aqui choro naquele calhauzito ali atrás que desbunda centenas de nomes de indivíduos que nem a puta pariu, mas a República, ornados com um caixão de pinho e a verderubra a solicitar qualquer coisa de diferente, ali está ele, lembro-me de uma notícia com meia dúzia de linhas, falecera em combate na província do Huambo e mais qualquer coisa que soa vagamente a ode, guardo esse pedaço de jornal à beira da minha cabeceira p'ra lembrar os vermelhos que me puseram no coração a cor do sangue que agora não posso debitar e foram caindo encarnados por esse planalto, vamos em frente que angolénossa
- É por ti, ó Lusitânia
se soubesse fazia como o outro e virava hispano a fugir do cu à seringa como um cristão em Roma perdida, por ti ó lusitânia agora que me lembro dos versos da cigarreira breve a cair da algibeira e o lenço branco a raiar o vermelho, formando à beira do Tejo onde as naus fugiram p'rá Índia à procura de canela para polvilhar o arroz doce e a mãe chorava porque um puto corria rua a fora com o tacho na mão, tristes tempos em que meia dúzia de tostões não dava p'ra mandar cantar o cego nem p'ra lhe oferecer uma chávena de café e o meu avô a berrar à minha avó bebes cevada que te fodes enquanto a sopeira bebia com avidez a palavra foder eu bem os ouvia de madrugada a escalar paredes na arrecadação, quem é que me partiu a bicicleta e levo uma chapada de mão assente, quem rebentou com os azulejos e levo mais uma, estou negro que nem posso debaixo do uniforme e querem formatar-me para ir matar pretos
- Lá vamos cantando e rindo
E a sopeira canta bem alto palavras de exaltação, porca que nem trovões foi ela que me ensinou o que era uma cona quando eu ainda nem tinha pêlos nos testículos, fui o homem da casa e o avô morreu quando o tio voltou na caixa de pinho, tadinho do soldadinho e lá vamos cantando e rindo pode ser que um dia cantemos tanto que nos caiam os culhões de cansaço, eu p'rá guerra não vou foda-se não vou, ainda está aqui ao meu lado, bonito é o Tejo hoje em dia, acompanha-me numa cerveja pergunto e deslindo o sorriso e você só me olha nessa indignação furtiva e eu dou comigo a pensar que o Tejo quase me parece azul e não vermelho.

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